quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Fiel amigo


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Levantei-me muito cedo, ainda mal clareava
A manhã cinzenta lembrou-me dias de outrora
Desci lentamente as escadas de pedra talhada
Olhei em volta para me certificar onde estava
Senti odores intensos a frutos de amora
Tive logo a certeza do lugar, na casa da Tapada

Viajei ontem e cheguei com o negrume da noite
Deixei a casa da grande cidade para vir descansar
Trouxe comigo o fiel amigo de longa data
Um cão que me obedece sem sentir o açoite
Um dia encontrei-o e logo o acolhi sem pensar
Tiritava de frio, estava enroscado e ferido numa pata

Senti compaixão por aquele ser que grunhia baixinho
Esfomeado, sujo e possivelmente abandonado
Tratei da ferida o melhor que podia e sabia
Mas não tinha de comer para o cachorrinho
Levava um pão com bifana que havia comprado
Este caiu, o animal logo o comeu. Como ele se lambia!

Olhei-o surpreso e deveras comovido
Logo ali o baptizei sem pestanejar, seria o Bifanas
É por esse nome que responde ao meu chamar
Agora e já após tanto tempo volvido
Ainda sorrio quando recordo aquelas semanas
Em que o cãozinho me vinha acordar

Hoje despertei com o doce chilrear da passarada
Caminhei pela encosta verdejante das oliveiras
Terreno sinuoso, mas amanhado com suor
Sigo a íngreme descida de forma apressada
Quase perco o equilíbrio nas ladeiras
Mas continuo a andar sem temor

A brisa da manhã ruboresce-me a face
Tal como o afagar de uma mão de mulher
Apesar da idade repleta de primaveras
Apresso o passo, sinto-me fresco como uma alface
Os ares puros do monte espicaçaram o meu querer
Quase sem dar por isso estou junto das azinheiras

De longe chegam-me os ecos de um latido
É o Bifanas que acordou e sente-se sozinho
Do fundo do vale fixo os contornos da casa
Chamo por ele bem alto e apuro o ouvido
O silêncio é total, eu espero um bocadinho
De nada valeu a espera, por isso dei à asa

Depois de ter percorrido tão longo caminho
Sentei-me na borda de uma pedra sem idade
Feliz e cansado da caminhada imprimida
A natureza fazia-me sentir como um anjinho
Já havia esquecido o bulício da cidade
Quando o Bifanas chegou para pedir comida

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ser criança



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Eu quero voltar a ser criança
Correr por montes e vales infindáveis
Seguir longas estradas ou caminhos estreitos
Desejo preservar o prazer da lembrança

Daquela infância com objectivos insondáveis
Quando eu não sabia que a vida era para os eleitos

Tempos idos vividos com necessidade
Mal vestido e de pé descalço
Era um garoto como os demais
Pisava a terra e sentia-lhe a humidade
Mas não tinha ninguém no meu encalço
Era livre, mais ainda que os pardais

Amigos de brincadeira eram tantos
Todos queriam o que mais divertia
A bola de trapos era o jogo mais apetecido
No lançamento do pião fazia pontos altos
Com as raparigas apreciava a companhia
Vibrava no esconde-esconde ao desconhecido

A macaca era outra jogatina
Que entretinha qualquer criança
A destreza dos pulinhos ao pé-coxinho
De casa para casa era a nossa sina
O equilíbrio era o fiel da balança
Para ganhar tinha que ser moidinho

Como eu gostava de ir para a ribeira
Percorrer as suas margens escorregadias
Entrar naquela água límpida e chapinhar
Procurar nos esconderijos da beira
Os pequenos peixes e até enguias
Mas raramente algum conseguia apanhar

Que saudades daquela pequena aldeia
Humilde lugar que me viu nascer
Dia e noite percorri carreiros conhecidos
Vivi a efervescência e dias de calmaria
De manhã ia à escola para descobrir o saber
Hoje só sei o caminho dos passos perdidos